Em recentes dados divulgados pelo observatório GGB (Grupo Gay da Bahia), Mato Grosso do Sul apareceu em 14ª posição do ranking de unidades da federação com mais registros de mortes de pessoas LGBTQIA+ em 2022. Contudo, assim como nos casos de feminicídios, que na maioria das vezes são resultados de violência doméstica, as vítimas desta qualificação vivem um longo histórico de agressões antes de “entrarem para as estatísticas”.
Nascido em Campo Grande, Carlos Eduardo Leite sentiu que tinha algo diferente pela primeira vez quando ainda era criança, quando “se entendeu” por gente, aos 6 anos. Morando no município de Taciba, no interior de São Paulo, com pouco mais 5 mil habitantes, ele se viu um menino preso em um corpo de menina.
Dentro do lar cristão, sofreu inúmeras violências – físicas e psicológicas – enquanto se descobria. Até que, aos 13 anos, se viu farto das surras que levava do pai e decidiu tentar a vida por conta própria, desta vez nas ruas do município de Bebedouro, também em São Paulo.
“Na rua, conheci os demônios, e eles não tinham chifres. A rua não é lugar para ninguém, muito menos para um garoto de 14 anos. Não tinha como viver, não havia plano A e nem B. No fim acabei usando a única coisa que eu tinha meu corpo, eu me prostitui, pois precisava comer, mesmo sentindo nojo de homens e mulheres mais velhas me deitava para ter mais um dia de lar, às vezes ficava a noite toda sem dormir por que não me deixavam, sempre me molestando”, relatou Carlos.
Os problemas só foram piorando com a hostilidade das ruas e Carlos começou a migrar de cidade em cidade, em vários estados, e em uma ocasião encontrou o que chamou de “dona da rua”, a droga popularmente conhecida como crack.
“Fui viciado em crack e por muito tempo, até que uma garota de programa me viu afogar e me estendeu a mão. Ela me ajudou sem eu oferecer nada para ela, eu era só um adolescente coberto por urina e há 3 dias sem banho e com fome. Olha que ironia, a pecadora me salvou, e hoje após 31 anos desde meu nascimento, posso dizer sou um homem bem entendido, dono de mim e de minha mente. Não aceito nenhum tipo de opressão, principalmente aquelas usando o nome do nosso criador e seu filho Senhor Jesus Cristo. Ele enviou uma prostituta para me salvar, isso não soa bíblico?!”, relatou.
Carlos se recuperou do vício e de volta em Campo Grande, se casou, estudou e atualmente é militante da causa animal. Também foi idealizador do 1° Mister Trans de Mato Grosso do Sul.
“Sou casado com uma linda mulher, tenho minha casa e meu carro, tenho a melhor profissão do mundo que é cuidar dos pets. Importante frisar, pois geralmente a sociedade vê e prega que pessoas trans nunca tem nada, e sempre nos marginalizam ou prostituem. Na verdade a gente pode, a gente consegue, a gente sonha e realiza”, ressaltou.
Ele também se reconciliou com a família. A dor por perder a juventude do filho fez com que os pais revissem os próprios conceitos. “O filho que hoje eles tanto amam e defendem, pois entenderam graças a Deus que eu sou uma pessoa extremamente normal com sangue, veias, ossos, cérebro e coração assim como todos”, completou Carlos.
Apesar de todos o histórico de violência, Carlos conseguiu se estabelecer em Campo Grande, acima de qualquer preconceito. No entanto, oito vítimas LGBTQIA+ não tiveram a mesma oportunidade em Mato Grosso do Sul.
De acordo com dados divulgados pelo observatório GGB (Grupo Gay da Bahia), que monitora anualmente os registros de violência contra a população, somente no ano passado, oito ocorrências de mortes violentas foram registradas. Os números levaram o Estado a ocupar a 14ª posição do ranking de unidades da federação com mais registros de mortes de pessoas LGBTQIA+ em 2022.
Em números absolutos, o Estado ficou à frente, por exemplo, de Goiás, que tem quase três vezes mais habitantes. Campo Grande, onde quatro dos crimes violentos foram identificados, figura como o décimo município brasileiro com o maior quantitativo de óbitos.
Acolhimento – Uma das instituições que realizam acolhimento de pessoas LGBTQIA+ vítimas de algum tipo de violência é a Casa Satine. O coordenador Leonardo Bastos explicou que existe um grupo de profissionais e voluntários que oferecem atendimento psicossocial e orientação jurídica através da clínica social, um dos núcleos da casa. Além do atendimento psicológico/terapêutico.
“As vítimas de LGBTfobia podem acessar a casa através de suas redes e a partir disso, é identificado a solicitação do pedido e feito a triagem para entender quais são as necessidade daquele indivíduo”, enfatizou.
Apesar dos números de violência, Leonardo ressaltou que os índices podem ser ainda maiores, já que existe um grande número de subnotificação de casos de homofobia. A criminalização da homofobia, inclusive, só foi aprovada em 2019 no Brasil.
“Mas nós sabemos também que medidas, ações e campanhas como já foram realizadas aqui no Mato Grosso do Sul avançaram e há uma maior procura da população LGBT. Nós fazemos um grande apelo a toda a população para que ela possa de fato denunciar, que ela não sofra calado para que esses números virem políticas públicas de enfrentamento a violência LGBTfóbica”, disse Leonardo.
Serviço – A Casa Satine precisa de voluntários para atendimento nas áreas de Psicologia, Educação, Direito, Cultura e Esporte, Comunicação, Saúde, entre outros. Interessados podem se candidatar através deste formulário.
Para quem precisa de acolhimento, é possível buscar ajuda da instituição neste formulário. No Instagram, a rede de apoio está disponível no @casasatine.
(Fonte: CampoGrandeNews. Foto: Divulgação)