Até o início de fevereiro, centenas de trabalhadores indígenas de Mato Grosso do Sul devem desembarcar em municípios da região Sul do país para uma nova colheita de maçãs das espécies gala e fuji. São oportunidades de um labor digno, com a observância da legislação trabalhista e perspectivas de rendimentos bastante acima dos valores que essa população costuma embolsar nas contratações informais e por empreitada a que é submetida.
Rogério Hirto Jorge, 35 anos, faz parte de um grupo formado por 45 trabalhadores que deixou na última segunda-feira (22) a aldeia Lagoa Rica, no município de Douradina (MS), rumo à cidade de Vacaria (RS), distante aproximadamente 1,3 mil quilômetros. Todos passarão os próximos 45 dias laborando nas plantações da empresa Bortolon Agro Comercial, que apenas no ano passado empregou 1.057 indígenas do estado.
“Desde 2019, nossa turma sai da aldeia para o Rio Grande do Sul. Esse trabalho trouxe muitos benefícios para nós e para a nossa comunidade. Ficamos 45 dias por lá e depois voltamos. Caso tenha mais oportunidade, a gente vai para outra empresa fazer o serviço da colheita da maçã fuji”, comemora Jorge, que ainda auxilia no recrutamento dos trabalhadores indígenas da aldeia Lagoa Rica. Além de participarem da colheita da fruta, muitos são requisitados em outras etapas da safra, como a poda e o raleio, durante o ano da produção.
O impacto positivo que o emprego digno da maçã promove na vida desses trabalhadores também beneficiou Marcelo Quevêdo Pedro, 33 anos. Há quatro anos, um dos atuais vereadores de Douradina, despedia-se de familiares e unia-se ao coletivo de trabalhadores contratados pela empresa Razip, em Vacaria. “Hoje, é um privilégio ver o pessoal saindo da nossa aldeia e indo para o Rio Grande do Sul trabalhar na colheita de maçã. Embora o serviço seja distante, em outro estado, e exista o perigo nas estradas, não podemos desconsiderar as dificuldades que enfrentamos aqui na aldeia. Espero que tudo dê certo, que trabalhem, ganhem um dinheirinho e voltem tranquilos, porque a família deles está aqui, esperando esse retorno”, manifestou Pedro.
Jeferson Pereira, procurador do Trabalho em Dourados, fiscaliza essas contratações desde 2014, por meio de uma parceria entre Ministério Público do Trabalho, Governo de Mato Grosso do Sul por meio da Fundação do Trabalho de MS (Funtrab), Instituto de Direitos Humanos, Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae) e Coletivo dos Trabalhadores Indígenas.
“Com essa atuação estratégica, buscamos inibir a prática irregular do aliciamento desses trabalhadores e evitar que sejam submetidos a condições degradantes de labor. Ao efetivarmos a intermediação dessas contratações por meio da Funtrab, permitimos que fossem atendidas as demandas das empresas integrantes do setor, bem como a necessidade de subsistência dessa categoria de trabalhadores residente aqui no estado. As empresas apresentam a demanda, a Funtrab dispara as vagas existentes, os trabalhadores procuram a Funtrab e já saem das suas aldeias com os contratos de trabalho devidamente anotados no sistema e-social e na carteira”, esclareceu o procurador.
Ainda segundo Pereira, representantes das instituições envolvidas na parceria, especialmente da Coetrae, têm participado ativamente de inspeções in loco nas instalações físicas das empresas empregadoras dessa mão de obra, acompanhando de perto como é desenvolvida a atividade produtiva, as condições sanitárias e de conforto dos alojamentos, se os espaços fornecidos para refeições são apropriados, como é executado o transporte coletivo para as frentes de trabalho, entre outras atividades relacionadas ao cultivo de maçãs.
Exemplo dessas providências práticas ocorreu em outubro do ano passado, quando uma audiência administrativa organizada pelo Poder Público reuniu produtores rurais e representantes de diversas empresas do setor de maçã. O encontro colocou no centro do debate o atual cenário das contratações de indígenas e a continuidade da aplicação dos planos de biossegurança elaborados pelos empregadores e dos protocolos sanitários estipulados pelas autoridades de saúde pública com foco na prevenção ao contágio por Covid-19. “Isso tem trazido um ganho significativo para a sociedade sul-mato-grossense e para a população indígena do estado. Tanto é que quase 10% da população indígena tem sido contratada para trabalhar na colheita da maçã”, ponderou Jeferson Pereira.
O procurador lembrou, ainda, que a abertura desse mercado de trabalho para os indígenas surgiu em um período que muitos perderam oportunidades antes desempenhadas no corte manual da cana-de-açúcar, após a mecanização da cultura que desencadeou um desemprego estrutural nas aldeias. “Em regra, eles não têm qualificação para trabalhar com máquinas computadorizadas, e a colheita da maçã é manual, faz parte do estilo de vida deles”, acrescentou.
Já o presidente do Coletivo de Trabalhadores Indígenas de Mato Grosso do Sul, José Carlos Pacheco, enfatiza que o emprego da maçã tem aquecido a economia dos municípios adjacentes às 78 comunidades indígenas de origem, ao final da safra, quando os trabalhadores recebem os rendimentos. Segundo ele, o estado arrecada a cada ano em média R$ 28 milhões, beneficiando comércios locais como de Amambai, Coronel Sapucaia, Dourados, Japorã, Iguatemi, Aquidauana, Anastácio, Miranda e Caarapó.
“Quem ganha com isso é a sociedade sul-mato-grossense, é a sociedade brasileira. Os indígenas começaram a ter visibilidade pela qualidade de vida que essas empresas estão proporcionando a eles. Caminhando pelas aldeias do estado, percebo a diferença que essas oportunidades estão trazendo. Certa vez, fui a uma aldeia no município de Coronel Sapucaia, quando um trabalhador indígena disse assim: ‘Zé Carlos, venha aqui, está vendo essa casa? Estou construindo com o dinheiro que eu ganhei da maçã’”, recordou emocionado.
As empresas contratantes pagam o mesmo salário-base (em torno de R$ 1,3 mil), mas o rendimento bruto pode variar de acordo com outras vantagens oferecidas, como gratificação por produtividade, podendo chegar a quase R$ 3 mil. Os empregadores também arcam com o custo do transporte dos indígenas (ida e retorno), alimentação, alojamento e cesta básica.
(Com assessoria. Foto: Divulgação)