Bolsonaro defende que passou os papéis entregues pelos irmãos “para frente”, pedindo ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, uma investigação do caso na pasta. Bolsonaro também teria dito que enviaria o caso à PF. Entretanto, Pazuello saiu do cargo dias depois e não há registros de que a Polícia Federal tenha de fato investigado as suspeitas.
Para Elival da Silva Ramos, professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Bolsonaro pode ter sido mal orientado nesse ponto. “O Código Penal aponta que o presidente da República, assim como deputados e senadores, podem cometer crime de prevaricação, como agentes políticos. Talvez alguém tenha informado mal o presidente sobre essa questão”, diz.
Luis Ricardo e Luis Claudio Miranda supostas irregularidades na contratação da vacina indiana Covaxin. Foto: AGÊNCIA SENADO
“O Ministério Público Federal (MPF) pode entender que há indícios de autoria e materialidade do crime e apresentar uma denúncia contra Bolsonaro. Pode também considerar que esses indícios não são suficientes e arquivar”, diz Chemim.
No cenário de uma denúncia apresentada, a Câmara teria obrigatoriamente que analisar e votar sobre a abertura de ação penal contra Bolsonaro no STF — aqui não há a possibilidade de não analisar a matéria, como acontece por exemplo com pedidos de impeachment, em que a decisão de apreciar ou não fica a cargo do presidente da Casa.
“Nesse caso, Bolsonaro seria julgado pelo STF, que diria se ele cometeu ou não o crime de prevaricação relacionado à função pública.”
A advogada explica que esse julgamento teria natureza público-administrativa, pois o crime teria sido cometido no exercício da função de agente público. Já um processo de impeachment, por exemplo, poderia correr em paralelo, mas o julgamento caberia ao Congresso e teria caráter político, envolvendo crimes de responsabilidade (prevaricação poderia ser um dos fatores a serem julgados pelo Congresso).
Se condenado por prevaricação pelo STF, Bolsonaro seria retirado do cargo definitivamente e poderia até ser preso, embora Chemim argumente que o crime de prevaricação raramente é punido com a detenção do réu.
Para Elival da Silva Ramos, da USP, o caminho para um afastamento dependeria muito da atuação do chefe da PGR, Augusto Aras. “Só uma pessoa pode processar o presidente: o procurador-geral. Se ele disser que não há indícios de crime, acabou. O Supremo não tem o poder de abrir um processo penal”, diz.
A Polícia Federal abriu inquérito para apurar se Bolsonaro prevaricou sobre denúncias de corrupção na compra da Covaxin. Foto: EPA
Aras, indicado ao cargo por Bolsonaro, tem sido criticado por sua proximidade com o governo — ele era um dos nomes mais cotados para a indicação do presidente a uma vaga no STF. Inicialmente, o procurador decidiu não abrir uma investigação contra o Bolsonaro no caso da Covaxin, mas, pressionado pela ministra Rosa Weber, o MPF iniciou o inquérito.
O cientista político Carlos Melo, professor do Insper, ressalva também que, embora possa ocorrer o afastamento iniciado por esta via jurídica, ela ainda depende de um contexto político — materializado na eventual votação da denúncia na Câmara.
“Às vezes, os argumentos jurídicos não são suficientes, porque o último filtro sempre será da política — e isso passa por ter a maioria qualificada para se abrir o processo (de afastamento)”, aponta o analista.
“Michel Temer estava desgastadíssimo, o procurador-geral da República pediu duas vezes a abertura de processo à Câmara, havia todo dia no jornal uma denúncia nova, um clima ruim, popularidade na sola do sapato… E não houve afastamento. Ele de alguma forma conseguiu o que a Dilma (Rousseff, que sofreu impeachment) não conseguiu: a partir do controle da máquina, manter votos favoráveis para si.”
Apesar do destaque ao pragmatismo da política, Melo diz que o afastamento de um presidente, — seja devido a uma ação no STF, seja por pedido de impeachment — é um “processo” que acontece com a combinação de vários fatores, nunca apenas um. Estes podem ser crise econômica, pressão das ruas, a articulação por parte do vice-presidente, entre outros.
Sua leitura da situação de Bolsonaro, ameaçado por pedidos de impeachment e pelo inquérito da PF, é a de que há muitos desses fatores colocados — mas a própria relutância do presidente da Câmara Arthur Lira em acatar os pedidos de impeachment indicam que, provavelmente, um afastamento não seria hoje aprovado na Casa.
Para Melo, a provável rejeição na Câmara pode explicar muito mais a postura de Lira do que a aliança deste com Bolsonaro. Na sua avaliação, se as condições para o afastamento se firmarem, o presidente da Câmara acataria o processo.
“Tem o fator da aliança com o Bolsonaro, é claro, mas tem uma frase do Tancredo Neves que dizia: o bom político vai com o outro até a sepultura, mas não se joga. Acho que o Arthur Lira é esse tipo de político, vai com o Bolsonaro até a sua sepultura mas não se joga.”
Fonte: BBC BRASIL