Ágatha é quem dá voz às meninas pretas que cresceram em meio ao racismo, Regina é a artesã que sonha ver a filha bebê ser o que quiser, e Kely é a artista que se emociona no palco ao ser testemunha do encontro de meninas e mulheres negras de Mato Grosso do Sul.
No primeiro dia de julho, mês que ressalta o protagonismo das mulheres pretas no Estado, o auditório do Bioparque Pantanal ficou abastecido de histórias, e é só o começo do “Julho das Pretas”.
“Este é o momento que a gente traz um recorte e a vivência da mulher negra no contexto brasileiro para homenagear nossas heroínas Dandara, Tereza de Benguela e tantas outras negras que são importantíssimas na história do nosso País e que não estão evidenciadas. Este é o período que nós refletimos: como nós mulheres negras estamos nessa sociedade?”, pergunta a subsecretária de Políticas Públicas para a Igualdade Racial, Vânia Lúcia Duarte.
A programação da campanha da Subsecretaria, pasta ligada à Setescc (Secretaria de Estado de Turismo, Esporte, Cultura e Cidadania), começou com o lançamento, em Campo Grande, do livro “Os sonhos de Ágatha”, da desembargadora do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, Jaceguara Dantas.
“Os sonhos de Ágatha é um pouquinho da história da maioria das meninas negras que passam por situações de discriminação racial ao longo da vida, mas que nunca deixam de sonhar, e que vão se empoderando e mudando a realidade. As páginas explicitam essa força e a energia das meninas negras”, descreve a subsecretária.
No palco, a autora do livro, Jaceguara Dantas enfatizou a premissa que pauta sua trajetória, por ser a primeira mulher negra desembargadora no Estado. “Eu ocupo um lugar de destaque na sociedade, e procuro fazer o meu trabalho com um olhar extremamente humano, focado nas pessoas e nos grupos vulneráveis, nos invisíveis sociais e nas pessoas excluídas socialmente”.
As páginas de “Os sonhos de Ágatha” foram escritas durante a pandemia da covid-19, quando a desembargadora revisitou a infância e vieram à memória episódios que a marcaram profundamente. “Consegui fazer algo positivo destes momentos, por isso o livro chama “Os sonhos de Ágatha”, que é uma pedra que tem o poder de transformar energia negativa em energia positiva, e o principal foco é discutir a questão racial, que é um tema extremamente árido e difícil, na perspectiva de uma criança por meio de uma linguagem lúdica e tocante”, detalha.
Para entender como o racismo é algo que exclui e machuca, a desembargadora compartilhou experiências vividas quando criança, e como a partir das oportunidades que teve conseguiu dedicar sua vida ao ideal de justiça, igualdade racial e inclusão de todas as pessoas. “Hoje, eu quero dizer para os meninos e meninas negras que vocês podem chegar não só onde eu estou, mas ir muito mais além”, afirma.
E se as falas parecem complexas, a contação de histórias com a arte-educadora Kely Zerial fez a ponte entre as páginas e o público, em especial às crianças. Música, voz e violão deram vida à pequena Ágatha diante de uma plateia ansiosa pela história.
“Mulher pretas, miscigenadas… Quantas Ágathas vieram sendo ceifadas da infância até a vida adulta com medo do cabelo, da boca? Se ela é importante para mim, que já cresceu, imagina para vocês?”, diz Kely emocionada. Negra, a artista relembrou o sofrimento vivido na escola, quando colegas usavam características da menina para inferiorizá-la. “Eu fiquei emocionada aqui. Hoje a gente tem livro com crianças pretas, bonecas com cabelo crespo e a gente pode brincar com coisas que representam a gente de verdade”, resume Kely.
“Julho das Pretas”
Das páginas do livro para a temática da campanha, nesta edição, o Julho das Pretas tem como lema “Eu, mulher preta” e traz à reflexão a necessidade de fazer uma sociedade mais justa, democrática e por quê não amorosa?
Entre magistrados e juristas, colegas de profissão da desembargadora, a plateia estava repleta de mulheres, homens e crianças das comunidades de Furnas do Dionísio, São João Batista, projetos sociais e também da região do Ramez Tebet, que viram no palco a representatividade de mulheres negras ocupando espaços e conquistando sonhos.
Com a filha de pouco mais de 1 ano, a artesã Regina Teodora, de 29 anos, exibia o reconhecimento de artesã. Ela foi uma das 12 mulheres quilombolas de Furnas de Dionísio beneficiadas com a confecção da carteira de artesã, fruto de uma parceria da Subsecretaria de Políticas Públicas para a Igualdade Racial com a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.
“Muito bom para a gente ser reconhecida. Faz cinco anos que eu trabalho com artesanato de taboca, faço peneira, crochê. E agora, a gente tem esta comprovação”, comenta.
Com a filhinha Maria Ísis nos braços, Regina também viu na história contada no palco a esperança de ver a filha ser e fazer o que quiser. “Meu sonho é igual o do livro, que ela possa seguir com a vida e conseguir sempre o melhor para ela”, diz.
Cozinheira, Fátima Aparecida Gomes, de 61 anos, é a presidente do bairro Ramez Tebet, e quem trouxe a comunidade para o início da campanha.
“Nós temos famílias que não falam para a criança que ela é negra, e estes pequenos só vão descobrir quando começam a frequentar a escola e porque os outros colocam apelidos, debocham do cabelo, da cor. Na minha casa eu sempre aprendi que era negra, e com isso eu soube brigar, não que eu não tenha sofrido racismo, mas quando a gente conscientiza e explica para os nossos filhos que eles vêm de uma linhagem, estas crianças sabem quem são”, reflete Fátima, num exuberante turbante vermelho.
Presente no evento, a primeira-dama de Mato Grosso do Sul, Mônica Riedel, ressalta a importância da campanha para toda a sociedade. “O Julho das Pretas abrange tantas ações que se transforma em um mês inspirador e motivador para que a gente possa abrir nossos horizontes e nos indignar”.
Coordenadora de Políticas de Igualdade Racial de Campo Grande, Rosana Anunciação ressalta o empoderamento que a campanha provoca, assim como o reconhecimento etnoracial. “Julho vem evidenciar que todas as mulheres são importantes, porém, as negras precisam desse reconhecimento e valorização, e nós vamos ocupar vários espaços para falar de valorização, respeito e cidadania, e acima disso, nos conectarmos com a nossa ancestralidade”.